segunda-feira, 18 de março de 2013
Dissimulação não vai conter a inflação
Nunca é demais lembrar sir Alec Cairncross e sua insistência no parentesco entre a medicina e a economia, ambas misturas de conhecimento imperfeito, sabedoria popular, jargões obscuros e análise científica.
Ambas vulneráveis ao charlatanismo. Para levar o paralelismo ao extremo: o paciente tem febre alta e o médico é chamado às pressas. O caminho ortodoxo é receitar um antitérmico. Existirão, talvez, tratamentos alternativos amparados na medicina popular.
O menos desejável é que o médico quebre o termômetro e suponha que o paciente não está febril.
Parece absurdo, mas a metáfora retrata de forma precisa as escolhas que faz o atual governo quanto à política econômica. Entre opções mais ou menos espinhosas, prefere negar a realidade.
O governo tem demonstrado persistência na adoção de técnicas de dissimulação com o objetivo, pelo menos secundário, de dificultar análises objetivas da situação econômica do País. Alguns falariam até mesmo em tentativas canhestras de ludibriar a opinião pública.
As estripulias com dados fiscais envolvendo operações entre Tesouro, BNDES, Caixa Econômica Federal e Petrobrás têm sido ventiladas exaustivamente na mídia.
Têm como objetivo ocultar que o governo vem gradativamente abandonando seus compromissos quanto à geração de um superávit primário adequado nas suas contas.
Agora, mágicas semelhantes têm sido adotadas em relação à inflação crescente.
Afinal, se a inflação puder ser mantida abaixo dos 6,5% - limite superior da meta -, o governo poderá defender-se com menos dificuldade da acusação de que está abandonando o compromisso com políticas minimamente prudentes e de que está disposto a aceitar uma clara violação do modesto compromisso inflacionário implícito no atual regime de metas.
O aumento das tarifas de transportes coletivos no Rio de Janeiro e em São Paulo foi postergado. Embora a redução das tarifas de energia elétrica faça sentido do ponto de vista da melhoria da competitividade dos produtos brasileiros, é sempre verdade que haverá impacto não desprezível sobre a inflação.
O mesmo se aplica à desoneração fiscal da cesta básica: embora bem-vinda do ponto de vista social, alivia pressões inflacionárias.
É com melancolia que se lê sobre reuniões do ministro da Fazenda com donos de supermercados com o objetivo de conter preços. Desde as grotescas iniciativas de laçar bois no pasto, que marcaram a agonia do Plano Cruzado, presumia-se que o País tivesse aprendido que, para controlar a inflação, é fundamental conter a demanda e que os instrumentos adequados para isso são a taxa de juros ou o aperto fiscal.
Nos velhos tempos, práticas que pretendiam escamotear evidências factuais - desde a tortura até a inflação crescente - eram típicas de regimes totalitários. Regimes de exceção permitem que sejam reprimidas com impunidade revelações consideradas inconvenientes.
Em episódio conhecido, em 1973, o governo teria patrocinado o uso de preços tabelados para o cômputo da inflação, algo reconhecido alguns anos depois pelo Banco Mundial e pelo próprio governo. No final dos anos 70, o governo andou expurgando índices no célebre episódio da inflação do chuchu.
A argumentação fazia sentido, pois não parecia razoável manter o peso do chuchu no cálculo do índice inflacionário, pois o aumento expressivo do preço do chuchu certamente resultaria em contração da quantidade demandada.
O problema era convencer a opinião pública, mesmo com a censura da mídia, de que não se tratava de mais uma mentira oficial destinada a reduzir a inflação com a adoção de métodos pouco convencionais.
Modernamente, a manipulação de preços tornou-se habitual em regimes populistas, entre os quais a Argentina talvez seja o exemplo mais notável. Lá, a indecente divergência entre a inflação oficial e diversos cômputos extraoficiais levou o FMI a censurar explicitamente o governo - aplicar-lhe cartão amarelo, na metáfora da senhora Lagarde, com ameaça de cartão vermelho, se não houver progresso em três meses. A "resposta argentina" foi "congelar" preços nos supermercados por 60 dias...
Avaliando as raízes do populismo no Brasil, há claro contraste entre as políticas econômicas do peronismo e do varguismo. E, no entanto, o governo atual, useiro e vezeiro na invocação de suas raízes varguistas, está de fato tomando o péssimo exemplo da Argentina como algo que merecesse ser copiado.
Sob Vargas, houve pouco que se aproximasse da sistemática penalização dos interesses agrícolas que seria tradicional em governos peronistas e neoperonistas.
No seu primeiro período de governo, o momento mais controvertido foi quando suspendeu o pagamento da dívida externa em 1937, atitude extrema que começou a ser revertida depois de um ano.
Eleito presidente em 1950, deu espaço às trapalhadas de Ricardo Jafet e João Goulart, no Banco do Brasil e no Ministério do Trabalho, mas, ambíguo, não deixou de contemplar os círculos mais conservadores. No cerne, era um populista bastante prudente do ponto de vista econômico e financeiro.
É preciso aceitar que a febre não vai ser reduzida com a quebra do termômetro.
* Marcelo de Paiva Abreu é doutor em Economia pela Universidade de Cambridge e professor titular no Departamento de Economia da PUC-Rio.
Fonte: O Estado de São Paulo - SP
Por: Marcelo de Paiva Abreu **
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