terça-feira, 5 de maio de 2015

Devemos ser bilingues?


ISABEL LUCAS - UOL EDUCAÇÃO - 04/05/2015 - SÃO PAULO, SP
Falar e escrever mais do que uma língua de modo fluente traz benefícios cognitivos e maior agilidade cerebral. Mas a vantagem pode estar a ser sobrevalorizada por estudiosos e educadores quando não fazem entrar nessa equação variáveis culturais, sociais, individuais.
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Frederico Lourenço, escritor, professor catedrático, começou a falar duas línguas desde os dois anos, quando a família foi viver para Oxford, Inglaterra. “Já falava português, claro, quando partimos, mas como fiz a escolaridade em inglês até aos dez anos, posso dizer que o inglês se tornou a minha primeira língua.
Na verdade, eu falava muito mal português até termos voltado para Portugal. Só me tornei bilingue a partir dos dez anos. Antes disso, basicamente eu era uma criança anglófona”, conta, antes de afirmar que agora, aos 51 anos, se sente verdadeiramente bilingue, ou seja, fala e escrita, razão e emoção, desenrolam-se com a mesma naturalidade em inglês e em português.
Thomas Manuel tem oito anos e quase desde que nasceu que está exposto a quatro línguas. O português do pai e do país onde vive, Portugal, o holandês — ou neerlandês — em que a mãe sempre lhe falou por ser holandesa, o inglês em que os pais comunicam entre si e o alemão que começou a aprender aos três anos quando por motivos profissionais os pais passaram um período da sua vida em Bamberg, uma pequena cidade no Norte da Baviera, e Thomas foi para uma creche.
“Não falava uma palavra de alemão, mas ao fim de dois meses estava integrado e percebia tudo o que se lhe dizia”, conta o pai, o jornalista e escritor José Riço Direitinho (colaborador do PÚBLICO). Quando a família voltou a Portugal, um ano depois, e para “uma integração menos dolorosa”, Thomas entrou para a Escola Alemã de Lisboa onde estuda Alemão como língua-mãe. Agora escreve e fala as duas línguas. Não escreve em holandês, entende inglês, e no português que Thomas fala não se nota o mínimo sotaque. “Eu sou português”, diz sem hesitar ainda que veja na televisão os jogos de futebol do Borussia de Dortmund, mesmo sendo adepto do Futebol Clube do Porto, os desenhos animados sejam em holandês e em tempos tivesse confessado ao pai que sonhava em alemão. “Agora já não”, corrige, “sonho em português”.
As infâncias de Frederico e Thomas pertencem a tempos diferentes, com acesso e exposição também diferentes a diferentes línguas, mas na infância de um como na do outro já ecoava o pensamento de Wittgenstein expresso no seu Tractatus Logico-Philosophicus (1922): “Os limites da minha linguagem significam os limites do meu mundo”, uma frase que serviu à revista New Yorker para lançar uma série de estudos e um artigo publicado no início do ano, em que encetava uma discussão sob o título Ser bilingue é mesmo uma vantagem? Começava por inventariar as vantagens cognitivas de falar várias línguas. Não apenas como ferramenta profissional, social, cultural mas como algo que afecta de forma positiva a actividade cerebral. À partida parece pacífico defender esta ideia sem exclusões de parte, mas muitos professores, terapeutas de fala e educadores com quem a Revista 2 falou juntam-se numa conclusão em coro: “É perigoso generalizar.”
A ideia de partida
O princípio parece simples. Ellen Bialystok, neurocientista canadiana, vencedora do prestigiado Prémio Killam (a Fundação Killam premeia anualmente a excelência da investigação em várias áreas) pelo seu contributo para o desenvolvimento das ciências sociais, há cerca de 40 anos a estudar o modo como o bilinguismo activa a mente, é clara a defender as vantagens de ser fluente em mais do que uma língua numa entrevista publicada em 2011, também na New Yorker, e que serviu como ponto de partida para esta reflexão. “Se der a crianças de cinco ou seis anos um problema de idioma para resolver, verifica que, sejam monolingues ou bilingues, elas conhecem praticamente a mesma quantidade de linguagem. Mas perante uma pergunta verificou-se uma diferença. Perguntámos a todas as crianças se uma determinada frase ilógica era gramaticalmente correcta. ‘As maçãs crescem em narizes.’ As crianças monolingues não conseguiam responder. Diziam ‘isso é pateta’, e era tudo. Mas as crianças bilingues diziam por palavras suas: ‘isso é pateta, mas está gramaticalmente correcto’. Nas bilingues, o sistema cognitivo manifestou-se capaz de se concentrar na informação importante e ignorar a que menos importa.”
A cientista explicava então o mecanismo de forma simples: “Temos um sistema no cérebro, o sistema de controlo executivo. A sua tarefa é a de nos manter focados no que é mais relevante, ignorando distracções. É o que possibilita guardar duas coisas distintas na mente ao mesmo tempo e escolher entre elas.
Quando temos duas línguas e as usamos regularmente, as redes do cérebro que trabalham ao mesmo tempo que falamos activam-se e o sistema de controlo executivo salta por cima de tudo o resto e responde apenas ao que é relevante naquele momento. Os bilingues usam mais esse sistema e é esse uso frequente que o torna mais eficiente.”
É neste pressuposto que muitos especialistas sustentam a teoria de que ser bilingue ou multilingue tem efeitos no atraso da demência, na prevenção de doenças como o Alzheimer ou na ideia de que um bilingue é mais capaz em actividades criativas ou em cálculo matemático.
“Isso pode ser ou não verdade”, afirmou à Revista 2 Craig Monaghan, director da St. Julian’s School, uma escola inglesa em Carcavelos. “Se assim fosse, imagino que os rankings PISA [Programa Internacional de Avaliação de Alunos, coordenado pela OCDE desde 2000] ligassem os elevados resultados em Matemática ou Álgebra com estudantes multilingues. No nosso caso, não é algo que tenhamos explorado, mas a maioria dos nossos estudantes é bilingue e tem excelentes resultados a Matemática.” Poderiam concluir de forma um pouco simplista, acrescenta, que “existe uma correlação”.
Na Escola Alemã de Lisboa, a maioria dos alunos também é bilingue, mas mais do que ter essa característica ou capacidade, o maior ou menor desafio que se coloca a essas crianças parte dos pais, ou dos educadores; eles são os intérpretes “de uma aprendizagem que é simultaneamente cognitiva relativamente às realidades que se lhes deparam, mas também do próprio fenómeno do bilinguismo”, refere José Valentim, subdirector daquela escola onde é também responsável pelo departamento de Português. “A criança, de início, apresenta uma única representação cognitiva para duas traduções diferentes e quando começa a frequentar o jardim de infância o seu cérebro possui mais do dobro da actividade em comparação com o do adulto. É nessa altura que a criança se apresenta mais aberta a novas aprendizagens, às descobertas e à pesquisa. Embora tenham decorrido muitas décadas, a teoria de Bloomfield [Leonard Bloomfield, 1987-1949,linguista] de que o controlo nativo de duas línguas nos primeiros anos é mais efectivo continua actual”, defende, apresentando dados da sua própria experiência. “Aos cinco anos, a criança que não enveredou por esse processo já domina a sua própria língua. Apresenta-se desde o início com uma flexibilidade cerebral para os registos que lhe são transmitidos. Através da audição repetida, do reforço positivo e do estímulo, e através de uma metodologia motivante e diversificada, reage espontaneamente, estabelecendo-se uma interacção recíproca entre os intervenientes no processo e, não menos importante, entre as línguas faladas e as próprias culturas transmitidas.”
E, mais uma vez, a ressalva: “O sucesso depende muito de outros factores, como as condições sociais, económicas, históricas e psicológicas, mas temos de concordar que, uma vez conseguido, permite alargar horizontes e enfrentar novos desafios”.

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