Houve um tempo em
que os brasileiros recebiam seus salários e corriam para fazer a compra do mês,
porque no dia seguinte os preços poderiam estar mais altos.
Nos supermercados,
era comum ver os clientes se apressando para pegar as mercadorias antes que os
temidos remarcadores passassem mudando as etiquetas.
Despensas e
freezers eram itens essenciais para muitas famílias e se uma alta da gasolina
era anunciada, em minutos os postos de combustível se tornavam o ponto final de
uma peregrinação de carros a perder de vista.
Há exatos 20 anos,
o real colocou um ponto final nessa luta diária dos brasileiros para garantir o
poder de compra do seu dinheiro.
Lançada em 1º
de julho de 1994, a atual moeda brasileira marcou o fim de um longo período em
que o país teve de conviver, primeiro, com o descontrole de preços. Foram três
décadas de inflação alta, que culminaram em taxas anuais de mais de 2.000% na
primeira metade dos anos 90.
Segundo, com uma
sucessão de planos econômicos, mudanças de moeda e medidas anti-inflacionárias
hoje inimagináveis, como o confisco do Plano Collor.
Em uma tentativa de
colocar essa trajetória em perspectiva, a BBC Brasil fez, com a ajuda de
economistas, um levantamento dos sete aspectos da vida dos brasileiros que
mudaram com o real e a estabilização da economia.
A lista inclui
desde mudanças no dia a dia das famílias até aquelas que contribuíram para
transformar o quadro econômico e social do país.
Fim da compra para estoque
Em seu auge, nos anos 90, a inflação chegou a 80% ao mês. Ou seja, em trinta
dias, o poder de compra dos salários caía quase pela metade.
Isso explica por
que muitos brasileiros corriam para os supermercados ao receber seu pagamento.
Era como se todo início do mês fosse véspera de Natal, com filas intermináveis
e carrinhos abarrotados.
"Para os
supermercados, era um desafio logístico: imagine só ter de fazer a maior parte
das vendas do mês em um ou dois dias", diz Clemens Nunes, professor de
economia da FGV.
"Cheguei a
ouvir de um fazendeiro de São Carlos que seus funcionários lhe pediam que os
pagasse em dias aleatórios e sem aviso prévio, porque se o comércio local
ficasse sabendo quando recebiam, subia os preços na véspera", lembra o
economista Edmar Bacha, um dos arquitetos do Plano Real.
Com a estabilidade
da moeda, as famílias brasileiras puderam parar de estocar alimentos e as
compras semanais se tornaram mais comuns.
Despensas e
freezers deixaram de ser essenciais – e muitos brasileiros se livraram dos
últimos na crise energética de 2001 e 2002, quando o governo estabeleceu
punições para quem não economizasse energia.
Possibilidade de planejar o futuro
No final dos anos 80 e início dos 90, se já era difícil prever os preços da
semana seguinte, quem dirá do mês ou ano seguintes.
Por isso, as
famílias não tinham muito como fazer planos, fosse para uma viagem de estudos
ou a compra de um imóvel.
Planejar férias em
família era um exercício de futurologia: Quanto custará um almoço? Quanto será
a passagem de ônibus?
Também havia pouco
estímulo para poupar. Temia-se que o valor poupado fosse corroído pela inflação
ou que as regras para as correções das aplicações bancárias fossem mudadas.
Com a estabilidade,
os brasileiros ampliaram sua capacidade de planejar o futuro.
"Em parte esse
costume brasileiro de deixar tudo para a última hora também pode ser
considerado um legado desses anos de inflação alta", diz Rubens Ricúpero,
ministro da Fazenda na implantação do real.
Fim das visitas frequentes aos bancos
Pode-se argumentar que nos anos 80 e início dos 90 não havia internet banking
como hoje, mas o fato é que muitos brasileiros gastavam um tempo enorme
administrando suas aplicações bancárias.
Havia quem ligasse
ou passasse no banco todos os dias para garantir que o dinheiro não ficaria
parado – o que significava perder valor rapidamente.
O fim dessa
necessidade foi mais uma mudança apressada pela estabilidade.
Nas aplicações, a
preferência era pelo curto prazo, como o overnight, que corrigia diariamente o
valor investido.
Depois das quatro
da tarde, muita gente só pagava suas compras com cheque, porque o desconto
seria feito no dia seguinte, o que lhes permitia ganhar com essa aplicação.
"Trabalhadores
e empresários tinham de gastar muito tempo pensando em como proteger seu
dinheiro", diz Marcelo Moura, professor de economia do Insper.
"E esse é um
tempo que hoje pode ser usado, por exemplo, para se desenvolver estratégias
para aumentar a eficiência das empresas."
Redução da pobreza
A inflação tende a ser concentradora de renda por uma questão simples.
Em meio a alta de
preços, os ricos e a classe média protegem seu dinheiro com aplicações
financeiras.
"O overnight,
por exemplo, chegou a render 1% ao dia", lembra Marcelo Moura, do Insper.
Outra alternativa
era comprar imóveis ou enviar dinheiro para o exterior.
"Já a
população pobre e desbancarizada não tem muita saída e acaba tendo seu poder de
compra bastante prejudicado", diz Moura.
Ele explica que é
por isso que o fim da inflação alta e consolidação do real são vistos como um
dos motores do processo de redução da pobreza que o Brasil assistiu nos últimos
anos, juntamente com os aumentos reais do salário mínimo e a expansão dos
programas sociais.
Intolerância a 'pacotes-surpresa'
Na década que antecedeu o lançamento do real, foram implementados cinco planos
econômicos no Brasil. Em cada um deles, os brasileiros tiveram de se ajustar a
regras anunciadas de surpresas – e às suas consequências.
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O congelamento de
preços do governo Sarney, por exemplo, teve como efeito colateral um grave
problema de desabastecimento, que levou o governo a colocar a Polícia Federal
para confiscar boi no pasto.
O Plano Collor
congelou 80% de todos os depósitos do overnight, contas correntes e cadernetas
de poupança por 18 meses. "Foi o ápice da loucura econômica", diz
Moura.
"Algumas
famílias que estavam comprando uma casa não puderam concluir a transação porque
o dinheiro ficou retido. Há notícias até de suicídios ligados a esse
plano", diz Ione Amorim, do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor
(Idec).
Nesse contexto, o
Plano Real inaugurou uma era em que surpresas são vistas como indesejáveis.
"As medidas do
plano foram anunciadas muito antes de serem aplicadas e isso evitou choques e
distorções, criando um precedente para a gestão da política econômica desde
então", diz Moura.
Crescimento do crédito
A expansão do crédito dos últimos anos - que permitiu a muitos brasileiros
comprar pela primeira vez TV, geladeira, carro ou casa - também foi possível em
parte graças à estabilização e controle da inflação pós-real.
Nos anos de alta de
preços de dois, três ou quatro dígitos, o crédito era muito mais caro e
escasso.
Os bancos tomavam
recursos a prazos curtos e também preferiam emprestar a prazos curtos, como
lembra Persio Arida, um dos "pais" do real e sócio do banco BTG
Pactual.
"Simplesmente
não havia crédito para comprar casa ou carro", diz Arida.
"E mesmo se
você conseguisse um empréstimo, não havia como garantir que seu salário
acompanharia o valor das prestações, constantemente reajustado", diz
Clemens Nunes, da FGV.
"Até o cartão
de crédito só era usado como último recurso, já que chegava a cobrar juros
mensais de 30% ou 40% ao mês."
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Facilitação de investimentos
No Brasil dos anos 80 e 90, a escalada dos preços obrigava as empresas a gastar
muito tempo com a gestão de seu caixa.
"Elas
dedicavam mais energia para decidir onde aplicar seu dinheiro do que pensando
em estratégias para aumentar a eficiência e produtividade de seus
negócios", diz Nunes, da FGV.
Investir na
economia real era ainda mais complicado do que hoje. Era impossível prever, por
exemplo, quanto os clientes potenciais de uma empresa poderiam gastar ou qual
seria o preço dos insumos.
"Você não
conseguia calcular a taxa de retorno [do investimento]", diz o economista
Persio Arida.
Não é de se
estranhar que investidores estrangeiros também fugissem dessas incertezas.
"Havia um
ceticismo grande com o Brasil no exterior e a moeda estável ajudou a mudar
isso", diz o ex-diretor do Banco Mundial Carlos Braga, professor da escola
de negócios IMD, na Suíça.
"Mas outras
reformas também foram importantes para chegarmos ao patamar de credibilidade
atual, como a lei de responsabilidade fiscal."
Em seu auge, nos anos 90, a inflação chegou a 80% ao mês. Ou seja, em trinta dias, o poder de compra dos salários caía quase pela metade.
No final dos anos 80 e início dos 90, se já era difícil prever os preços da semana seguinte, quem dirá do mês ou ano seguintes.
Pode-se argumentar que nos anos 80 e início dos 90 não havia internet banking como hoje, mas o fato é que muitos brasileiros gastavam um tempo enorme administrando suas aplicações bancárias.
A inflação tende a ser concentradora de renda por uma questão simples.
Na década que antecedeu o lançamento do real, foram implementados cinco planos econômicos no Brasil. Em cada um deles, os brasileiros tiveram de se ajustar a regras anunciadas de surpresas – e às suas consequências.
A expansão do crédito dos últimos anos - que permitiu a muitos brasileiros comprar pela primeira vez TV, geladeira, carro ou casa - também foi possível em parte graças à estabilização e controle da inflação pós-real.
No Brasil dos anos 80 e 90, a escalada dos preços obrigava as empresas a gastar muito tempo com a gestão de seu caixa.
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