Em
um gesto para não deteriorar as relações com o Brasil, que envolveu
negociações de bastidores, a União Europeia (UE) desistiu de contestar
na Organização Mundial do Comércio (OMC) as vantagens fiscais concedidas
pelo governo brasileiro às empresas instaladas na Zona Franca de Manaus
(ZFM). De todos os questionamentos feitos pela UE, durante o pedido de
consultas feito no primeiro semestre, esse era o ponto que mais irritava
a presidente Dilma Rousseff. A UE abriu na sexta-feira o que será a
maior disputa comercial contra o Brasil na OMC, contestando parte
central da política industrial do governo de Dilma Rousseff, apenas
cinco depois de sua reeleição. A decisão de denunciar o Brasil ocorreu
nos últimos momentos da presidência do português José Durão Barroso na
Comissão Europeia, o braço executivo da UE. O Valor apurou que até o dia
anterior a demanda contra o Brasil estava pendente. A visão de Bruxelas
é de que a contestação vem mais como uma questão de oportunidade do que
uma simples constatação de que Dilma não mudará nada. E evita que o
novo presidente da comissão, o luxemburguês Jean-Claude Juncker, já
entre deflagrando uma disputa que poderia ser interpretada como
beligerância. Além disso, há a avaliação de que a denuncia formal contra
o Brasil não foi trazida antes à OMC para evitar mais polêmicas em
pleno processo eleitoral no Brasil. Na prática, os europeus contestam o
centro da política industrial do governo de Dilma Rousseff, incluindo
exigências de conteúdo local, que são normalmente proibidas pelas regras
da OMC. A Zona Franca, no entanto, acabou ficando de fora. Nos
bastidores, o governo brasileiro mandou um recado muito claro aos
europeus: mesmo se sofresse uma condenação na OMC, não recuaria um
milímetro nas políticas voltadas ao polo industrial de Manaus, que tem
caráter de "segurança nacional" e "desenvolvimento regional". A própria
Dilma, durante a cúpula Brasil-UE no ano passado, em Bruxelas, fez
questão de frisar: "Assinalei a minha surpresa de que a Europa, região
tão preocupada com questões ambientais, conteste uma produção
ambientalmente limpa, que gera emprego e renda e que é instrumento
fundamental para a gente conservar a floresta em pé". Esse recado foi
reforçado pela presidente durante a visita de Durão Barroso ao Brasil,
em julho. Conforme revelaram fontes dos dois lados, diante do risco de
estrago nas relações, a UE decidiu tirar do painel que iniciará no órgão
de solução de controvérsias da OMC toda a parte relativa à ZFM. Nas
conversas informais, foi citado um caso: numa disputa ocorrida na década
passada, em Genebra, os Estados Unidos venceram um duelo contra a UE em
torno das restrições europeias a alimentos geneticamente modificadas.
Por causa da resistência dos consumidores europeus, Bruxelas preferiu
simplesmente não cumprir as determinações da OMC. Todos chegaram à
conclusão de que, caso os questionamentos à ZFM fossem levados adiante,
não se chegaria a lugar nenhum e o desgaste para as relações
diplomáticas seria enorme. O ministro das Relações Exteriores, Luiz
Alberto Figueiredo, afirmou na sexta-feira que o Brasil demonstrará aos
europeus a adequação do regime automotivo do país às regras da OMC:
"Achamos que nosso regime é perfeitamente compatível e vamos demonstrar
isso no painel". Reservadamente, no entanto, interlocutores da
diplomacia brasileira acreditam que será muito complicado sustentar a
defesa do Inovar-Auto. O regime tem validade até 2017 e oferece desconto
no Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) a montadoras que se
comprometeram com planos de investimento no Brasil. Assessores
presidenciais afirmam que o governo não cogita mexer no programa por
causa do painel aberto na OMC. A avaliação oficial é que nenhuma decisão
de Genebra será implementada antes de 2017 - se os europeus saírem
vitoriosos do painel, ainda existe a possibilidade de apelação por parte
do Brasil. Conforme a avaliação reservada ouvida pelo Valor, o objetivo
dos europeus seria apenas garantir que o Inovar-Auto não se estenda por
um período adicional. Mas, deixando de existir, as regras da OMC não
permitem compensações em caráter retroativo. Caso saia derrotado, o
Brasil ficaria impune, desde que encerre o programa na data prevista. A
UE, por sua vez, conseguiria aumentar sua munição na OMC contra casos de
políticas industriais que envolvam regras de conteúdo local e proteção
adicional contra importados. Vários governos da UE não escondiam que não
dava para deixar passar as práticas brasileiras, que consideram uma
violação de regras da OMC e que a denúncia era necessária para
restabelecer "condições de igualdade'' na competição entre produtos
brasileiros e europeus. No argumento europeu, não dá para aceitar
barragem a importações em mercados que crescem, ainda mais num cenário
de recessão na Europa. Para vários governos europeus, o combate à
exigência de conteúdo local praticada pelo Brasil é questão de
princípio. O país é a sétima maior economia do mundo e tem influência
sobre outros emergentes. Se os programas não forem questionados diante
dos juízes da OMC, outros vão tomar o mesmo caminho, avaliam fontes de
Bruxelas. A UE deflagrou em 19 de dezembro do ano passado o mecanismo de
disputa contra o Brasil, pedindo consultas para discutir queixas de que
o governo brasileiro adotou medidas fiscais discriminatórias contra
produtos estrangeiros e de fornecer "ajuda proibida" aos exportadores
nacionais. Agora, a UE diz que as consultas fracassaram e acusa o
governo brasileiro de ter expandido e prolongado várias dessas medidas.
Exemplifica que a menor taxação para produtos de informática e máquinas
foi estendida para até 2029, enquanto as importações continuam a ser
fortemente taxadas. Bruxelas acusa o Brasil de restringir comércio
exigindo que produtores brasileiros usem componentes domésticos como
condição para obter desonerações. Questiona o país por proteger
"manufatureiras não competitivas'' da competição internacional e limitar
a escolha de produtos acessíveis para o consumidor brasileiro.
Exemplifica que um smartphone custa 50% mais no Brasil do que na Europa,
mesmo com produtores locais beneficiados com menor taxação. Desde 2011,
a UE vinha reclamando do Inovar-Auto, programa que estimula a inovação
na produção nacional de carros, mas dificulta a importação. A demanda
será examinada no dia 14 pelo Orgão de Solução de Controvérsias,
justamente quando a presidente Dilma estará na Austrália participando do
G-20.
Valor Econômico
31/10/2014
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